O MODERNISMO DE MÁRIO DE ANDRADE

Folha de S.Paulo, São Paulo, sábado, 8 de fevereiro de 1992.


ALFREDO BOSI

Quando a Casa do Estudante do Brasil pensou em comemorar o 20º aniversário da Semana de Arte de 22, o nome lembrado para proferir uma palestra que desse o mais fiel testemunho daquele momento decisivo da nossa história cultural foi o de Mário de Andrade. O grande escritor foi convidado a falar, e o fez exemplarmente lendo o texto "O Movimento Modernista", em sessão pública realizada no Auditório da Biblioteca do Itamaraty, aos 30 de abril de 1942.

Em tempos de metalinguagem parece oportuno refletir sobre as idéias centrais da conferência de Mário: em primeiro lugar, porque elas constituem um balanço considerável do que foi o movimento e, nesse sentido, conservam todo o seu interesse histórico de depoimento; em segundo lugar, porque pretendem dar-lhe uma interpretação; e, nesse sentido, iluminam tanto a Semana quanto a perspectiva cultural em que se situava Mário de Andrade; em terceiro lugar, porque elas propõem aberturas a problemas relevantes de crítica; e, nesse sentido, transcendem o objeto que as motivou e, a rigor, o próprio pensamento crítico de Mário tal como se formulava explicitamente em 1942.

Respeitando essas ordens de significados, é possível ler o texto "O Movimento Modernista" como se nele se articulassem três tipos de discurso:

1 - um discurso narrativo, que vai do autobiográfico ao grupal e volta deste para aquele: o que dá à palestra um discreto mas inequívoco tom de confidência oscilante entre o puro intimismo e a memória polêmica de toda uma geração;

2 - um discurso histórico-genético, que entende situar o movimento em uma dimensão temporal precisa (o primeiro pós-guerra) e proceder à sua interpretação no interior da vida brasileira. O seu eixo é também polêmico: a condição paulista da Semana e dos participantes mais ligados a Mário;

3 - um discurso crítico e, nos momentos de mais alta tensão conceitual, um discurso estético. Nele se desenvolvem ou se apontam certos temas que trabalham de longa data a consciência artística de Mário de Andrade: problemas de linguagem, de liberdade da pesquisa formal, de vinculação do escritor com as séries social e política.

O documento presta-se, como ser vê, a mais de um ponto de vista. A nossa leitura, pela natureza mesma desta comunicação e pelo tempo que lhe foi destinado, será, por força, seletiva. Mas, na medida em que atender à realidade dos três discursos imbricados, propõe-se não deixar na sombra nada de fundamental.

O Mário maduro de 1942 tinha muito que contar; e a pretexto daquela primeira comemoração oficial da Semana (pois em 32 eram bem outros os cuidados do governo federal e das autoridades paulistas), deixando-se tomar, confessadamente, pelo prazer das reminiscências e do desabafo grupal. A Semana fora um acontecimento: devia ser descrita, interpretada, submetida a juízos de valor; mas, para tomar forma, ela precisou de atravessar a consciência, a vontade, o corpo de certos indivíduos; e Mário foi um destes, talvez o principal deles. Como ignorar as ressonâncias psicológicas tão fundas que deram ao fato uma densidade passional única, talvez irrepetível? A palavra do escritor pretende recuperar também aquela vibração que ser perde no registro histórico quando não se pressiona o pedal da evocação.

E não há um quê de petulantemente pessoal, até nas rupturas gramaticais, neste passo evocativo?

"Fazem vinte anos que realizou-se no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna. É todo um passado agradável, que não ficou nada feio, mas que me assombra um pouco também. Como tive a coragem para participar daquela batalha! É certo que com minhas experiências artísticas muito que venho escandalizando a intelectualidade do meu país, porém, expostas em livros e artigos, como se essas experiências não se realizam in anima nobile. Não estou de corpo presente, e isso abranda o choque da estupidez. Mas como tive coragem pra dizer versos diante duma vaia tão barulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma conferência sobre artes plásticas, na escadaria do Teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?..."

A confissão, a certa altura, se torna mais cerrada, envolvendo as reações da família, já antes de 22 pouco disposta a ceder às bizarrices do parente vanguardeiro; e o texto mistura com ímpeto e verve as águas da vida doméstica com as da vida espiritual e artística do jovem Mário:

"Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesso dele que eu gostava, uma 'Cabeça de Cristo', mas com que roupa! eu devia os olhos da cara! Andava às vezes a pé, por não ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que gastara seiscentos mil réis em livros... E seiscentos mil réis era dinheiro então. Não hesitei: fiz mais conchavos financeiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a minha 'Cabeça de Cristo', sensualissimamente feliz. Isso, a notícia correu num átimo, e a parentada, que morava pegado, invadiu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berravam. Aquilo era até pecado mortal! estrilava a senhora minha tia velha, matriarca da família. Onde se viu Cristo de trancinha! Era feio! medonho! Maria Luísa, vosso filho é um 'perdido' mesmo."

E, se memória da circunstância biográfica só tem valor quando serve para iluminar, dalgum modo, a gênese da obra literária, o depoimento de Mário é ainda aqui exemplar: a ira dos familiares não terá sido inútil para a sua história poética: aqueceu-o e exasperou-o a tal ponto que acabou lhe dando o título do seu primeiro grande livro de poesia moderna:

"Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara. 'Paulicéia Desvairada'. O estouro chegara, afinal, depois de quase ano de angústias interrogáveis."

A citação desse, e doutros passos, não visa a relembrar o já vasto anedotário dos modernistas. Pretende, antes, sugerir o quanto a obra de Mário de Andrade, não excluída a originalíssima prosa do crítico, se acha comprometida com a sua experiência de homem e com a constelação afetiva de que fazia parte. O escritor estava consciente dos riscos teóricos dessa vinculação; em nota no parágrafo mais abertamente biográfico, Mário não sabe a quem atribuir, mas garante que não foi seu; sobre o encontro do grupo carioca (Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Renato Almeida, Manuel Bandeira...) com o grupo paulista; sobre a intervenção decisiva de Graça Aranha e Di Cavalcanti; sobre o patronato audacioso de Paulo Prado... Os nomes vão configurando um universo preciso e datado de referências, de tal sorte que, a partir dum dado momento, a história da Semana vira crônica dum grupo. Mário pontua o tempo que correu de 1917 a 1922 registrando as andanças dalguns escritores e artistas que viviam até o fundo a boemia literária em meio a uma São Paulo de costumes ainda provincianos, embora já materialmente lastreada para erigir-se em centro industrial, em metrópole.

São poucas páginas, mas valem como uma célere montagem de primeiros planos em uma narração fílmica. Assiste-se às fugas desabaladas dentro da noite no Cadillac verde de Oswald de Andrade, para o Alto da Serra, para a Ilha das Palmas, onde os vanguardeiros liam uns aos outros as próprias obras-primas (ó eterna e insuspeitada arcádia!); ouvem-se conversas dos que tinham chegado há pouco da Europa e visto nada menos do que Picasso e conversado com Romain Rolland... E vai-se ver, não é que existem em São Paulo, quadros de Lasar Segal, "muito admirado através das revistas alemãs..."? depois, espetáculo maior, a Semana. Depois, de 22 a 30, os salões que se abrem para acolher os "enfant terribles" e tranformá-los sempre que possível, em "enfants gâtés".

Mário faz a ronda desses salões e lhes atribui uma importância que hoje parecerá estranha, talvez excessiva. Fique para a sociologia da vida literária o exame detido dessa intersecção de arte e mundanidade: o fato é que ela existe no mundo moderno, pelo menos desde que se consolidou o mecenato nas cortes da Renascença. No texto, a ênfase é posta na gratuidade da "maior orgia intelectual que a história artística do país registra". A bem da verdade, convém lembrar que as coisas começaram séria e modestamente nas reuniões das terças-feiras, em casa do próprio Mário, na rua Lopes Chaves: aí, "a arte moderna era assunto obrigatório e o intelectualismo tão intransigente e desumano que chegou mesmo a ser proibido falar mal da vida alheia". Só mais tarde vieram os salões de Paulo Prado, de Dona Olívia Guedes Penteado, de Tarsila do Amaral.

Ora, quando fraseio narrativo parece que vai encalhar nas areias dum descriticismo glutão, entre memórias de esplêndidos almoços luso-afro-brasileiros, de bailes desenvoltos da "alta", de viagens pelo Amazonas e chegadas à Bahia..., reponta na escrita sensível mas pensadas de Mário o fio dum outro discurso: histórico, ainda, mas já voltado para a interpretação, para a descoberta de gênese social do movimento.

A atitude de espírito dos modernistas, entre 22 e 30, qualificada como euforia e "cultivo imoderado do prazer", significa, para Mário de Andrade, uma expressão agônica, paroxística, duma classe aristocrática na iminência de ver cair por terra o poder e a glória.

Vinculam-se então a crise de status de velhos troncos paulistas em face da burguesia e do imigrante e a gratuidade de espírito, a inconsciência festiva que reuniu Prados, Penteados e Amarais aos inconoclastas de 22.

Recortemos alguns trechos mais assertivos:

"O nosso sentido era especificamente destruidor. A aristocracia tradicional nos deu mão forte, pondo em evidência mais essa germinação de destino - também ela já autofagicamente destruidora, por não ter mais uma significação legitimável. Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio e sempre nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu. Os italianos, os alemães, os israelitas se faziam de mais guardadores do bom senso nacional que Prados e Penteados e Amarais."

*

"Junto disso, o movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito. Bem natural, pois, que a alta e pequena burguesia o temessem (...) Uma coisa dessa seria impossível no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, mas apenas alta burguesia riquíssima. E esta não podia encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube perder, e isso é que a perde. Se Paulo Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, tomou a peito a realização da Semana, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de si os seus pares aristocratas e mais alguns que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espírito."

É um pensamento que tem a sua coerência interna. Constrói-se mediante um esquema de oposições cerradas e nelas se assenta: aristocracia versus burguesia; nobreza de São Paulo versus classe alta do Rio; homens da terra versus imigrantes; gratuidade dos decadentes versus bom senso dos ascendentes.

Visto de fora e de longe, porém, e confrontado com a dinâmica social dos anos 20, o sistema se revela inadequado, ou, pelo menos, discutível. Admitir a existência duma "nobreza" como classe à parte, distinta da alta burguesia, parece um desvio de abordagem peculiar a quem privilegia um certo grupo, por motivos de familiaridade, ligados antes a estilos de vida que a situações sócio-econômicas específicas. Mas não se trata aqui de discutir "in abstracto" a exatidão sociológica dos termos usados por Mário de Andrade, pois estaria em jogo toda uma leitura da história brasileira em termos de "estratos feudais:" em uma sociedade que, a rigor, desde a Colônia, se articulou em sistema de mercado, capitalista, logo incompatível com entidades pré-mercantis do tipo "aristocracia", "nobreza". De resto, o debate, elucidativo em torno do tema é recente, e Mário não o teria alcançado nem pressentido. O que importa é relevar, na tela do seu discurso interpretativo, uma sensibilidade atenta aos nexos que efetivamente existem entre grupos restritos da sociedade e certas posturas culturais que se opõem, ou parecem opor-se em um dado momento, à ideologia difusa, ao "bom senso" da maioria.

Não importa que, isolando extremamente um grupo e chamando-o "aristocrático", Mário tenha sido infeliz sociólogo: a sua observação dos fatos é certeira e espera duma sociologia mais feliz análise exata do fenômeno.

Se ao indicar a gênese social do Modernismo, Mário não pôde desembaraçar-se dos liames que o atavam a cerca de significados ideológicos, ao reconhecer o alcance criador ele soube dizer coisas definitivas.

A messe aí é rica, e a tarefa agradavelmente difícil é escolher temas que rendam uma discussão de caráter conceitual. Como dado prévio, não se pode esquecer que, na altura da conferência, Mário já tinha conseguido dar boa forma a algumas idéias críticas fundamentais sobre expressão e construção na obra de arte e sobre o seu grau de dependência em face das séries social e política. De 38, por exemplo, é o ensaio "O Artista e o Artesão", exame aturado das relações entre técnica, sociedade e indivíduo na criação artística. De 39 o estudo, breve mas intenso, sobre a pintura de Cândido Portinari, no qual se acha um ponto de intersecção entre a esfera plástica e a esfera mimética do quadro. E do mesmo 42, ano da conferência que nos ocupa, a bela aula sobre a "atualidade de Chopin", espécie de medalhão onde uma leitora intuitiva como d. Gilda de Mello e Souza vê desenhar-se em máscara, o rosto do próprio Mário, artista puro e homem do seu tempo.

Lastreado por tantos anos de reflexão crítica, Mário, ao enfrentar a tarefa de fazer o balanço do Modernismo, reconhece neste a convergência de três princípios de base: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; a estabilização duma consciência criadora nacional.

O primeiro tópico, e só ele, privilegia o nível estético. Nele se resumem todas as lutas pela liberdade de linguagem e da construção literária que foram a glória mais legítima do movimento. Ao desenvolvê-lo, Mário volta a teorizar sobre a realidade duma língua brasileira, especialmente duma sintaxe brasileira que recebera foros de escrita literária com o Romantismo consciente de Alencar, sofrera um processo repressivo no interregno realista-parnasiano, mas pudera, a partir dos modernos, impor-se de novo como fator de pesquisa poética e musical. E, tema recorrente em todo o seu itinerário crítico, retorna também a opinião segundo a qual, ao lado do Modernismo, só o Romantismo, como estado de espírito congenialmente antiacadêmico, é um paradigma para o pensamento de Mário crítico: graças a ele teria sido possível à arte brasileira recorrer sem timidez às matrizes folclóricas, à cultura índia, negra e mestiça, à mais genuína tradição popular, e passar daí à revolução. O paralelo que Mário de Andrade estabelece guarda o sabor das grandes reconstruções idealistas da história propostas por um Dillthey ou por um Spengler:

"Me refiro ao "espírito revolucionário romântico, que está na inconfidência, no Basílio da Gama do Uruguai, nas liras de Gonzaga como nas "Cartas Chilenas" de quem os senhores quiserem. Este espírito preparou o estado revolucionário de que resultou a independência política, e tive como padrão bem briguento a primeira tentativa de língua brasileira. O espírito revolucionário modernista, tão necessário como o romântico, preparou o estado revolucionário de 30 em diante, e também teve como padrão barulhento a segunda tentativa de nacionalização da linguagem. A similaridade é muito forte."

Nos outros dois tópicos aperta-se o vínculo entre arte e realidade social fala-se em inteligência artística brasileira, em consciência criadora nacional. Resulta assim, em nível mais abstrato, sempre a dupla visada de toda grande crítica, atenta à natureza e à função, à estrutura e à gênese da obra.

Ora, se o discurso caracterizado de Mário caminha todo para demonstrar que o Modernismo foi, ao mesmo tempo, pesquisa e invenção feliz duma linguagem artística e movimento "irrestritamente radicado à sua entidade coletiva nacional", surpreenderá um tanto o "mea culpa" ou o "nossa culpa" severo com que fecha a palestra.

Os vinte anos que separavam o conferencista de 42 da Semana de Arte Moderna marcaram esse homem excepcionalmente sincero com à arte, com o próximo, consigo mesmo. O adensamento ideológico da década de 30, o Estado Novo e a 2a Guerra, sob cujo impacto falava, dilaceravam a sua consciência e lhe propunham, sem ressolvê-lo, o problema das relações entre o artista e o homem inteiro. E, precisando de definir o que tinha sido a inteligência paulista de 22, de que ele fora, com Oswald, o mais ativo mentor, é com palavras de fogo que o faz:

"Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. E isso era o principal. Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente confessional, que terminarei este discurso falando mais diretamente de mim. Que se reconheçam no que eu vou dizer os que puderem. (...) Minhas intenções me enganaram. Vitíma do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem, mas é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço... E outra coisa senão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos, se fazendo, não me levaria a esta confissão bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós temos às nossas obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E, se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pega a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz."

Essa lucidez amarga dum escritor que viveu como poucos o dilema nacionalismo/internacionalismo, engajamento/esteticismo, não deve servir de prova fácil de acusação a 22 e, muito menos, ao intelectual exemplar que foi Mário de Andrade. Por outro lado, a severidade excessiva da autocrítica não nos deve induzir ao psicologismo de tudo explicar em termos de infundados sentimentos de culpa: o que resultaria em uma absolvição rápida e cômoda passada a todos quantos trabalhamos com a inteligência e a palavra.

Devemos, antes, ser fiéis ao texto e a quem o ditou. Isto é: devemos suportar o peso da contradição que foi apontada e não resolvida. As palavras de Mário de Andrade derivam sua força inquietadora dum universo que as transcende. Universo que abarca todas as conquistas do Modernismo, sim, mas também a defasagem entre a praxis artística e a praxis social, o tempo da criação e o tempo da ação. É um problema candente que, uma geração atrás, foi reproposto por homens da força dum Sarte, dum Brecht, dum Vittorini, dum Camus, e cuja formulação, hoje, passa por um conúbio qual a "subversão da escrita" vem a ser a mais violenta e eficaz das revoluções. Que estranhos recados nos manda a impotência!

Mas a palavra de Mário guarda todo o desconforto duma tensão não removida.

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