A ESTRONDOSA NEW-YORK


Publicado na Folha da Manhã, domingo, 2 de junho de 1929

Neste texto foi mantida a grafia original

(de uma carta de Eça de Queiroz a Ramalho Ortigão, escripta em 1873)

"De Nova York, dir-lhe-hei que é realmente a Nova York da tradição européa: - a grande, a extraordinaria, a estrondosa Nova York.
Na America não se tem comtudo esse amor de Nova York, porque ha na União cidades rivaes. Philadelphia é Nova York sem o deboche, Philadelphia é uma cidade muito moral - dizem aqui os "Quakers".
Os outros dizem simplesmente que é um alcouce. St. Louis, é outra cidade que não differe de Nova York, senão em ser mais bella na paisagem. Chicago, é, a todos os respeitos, melhor que Nova York - e é sem duvida a mais extraordinaria cidade do mundo: na carta que lhe escrevi - e que v. não recebeu - eu dava-lhe pormenores curiosos sobre Chicago, que é a cidade-resumo do genio evolutivo das populações do Oeste.
Nova York tem, mais do que as outras, o elemento europeu, manifestado por estes factos - "lorettes", restaurantes, "crevés", escandalos, agiotagem -: é o que a faz superior. De resto é uma cidade que em parte amo e em parte detesto.
Amo-a, porque... porque sim - e detesto-a, porque deve ser destestada. O que isto é, V. não imagina: a violenta confusão desta cidade, o extraordinario deboche, o horror dos crimes, a desordem moral, a confusão das religiões, o luxo desordenado, a agiotagem febril, a demencia dos negocios, os refinamentos do conforto material, os roubos, as ruinas, as paixões, os egoismos - tudo isso está aqui "chauffé ou rouge". Isto não póde durar muito, todo o mundo diz.
É uma cidade que tem cem annos e que está pôdre: está "detraquée".
Viveu muito, muito depressa - e chegou "sem educação". Porque a verdade é esta: Nova York não tem civilização. A civilização não é ter uma machina para tudo - e um milhão para cada cousa: a civilização é um sentimento, não é uma construcção. Ha mais civilização num beco de Paris do que em toda a vasta Nova York.
Aqui não ha gosto, nem espirito, nem distincção, nem critica, nem classificação - nada: uma sociedade podre de rica, afogada em luxo exagerando as modas, inventando muitas - e querendo enriquecer mais e ter mais luxo ainda. Você deve ter lido o que se tem passado aqui com o "Crédit Mobilier" e com outras poderosas associações bancarias, ligadas ao systema de administração: tem-se apenas descoberto que os homens publicos, de alto a baixo, são um sólo de ladrões.
Ladrões por toda a parte, eis a critica do commercio. Ladrões por toda a parte, eis a critica das ruas.
Ladrões! Nova York transborda de ladrões: veste-os, exporta-os, vende-os - e quantos mais enforca mais lhe nascem. Se você sahe do seu hotel e encara alguma das grandes ruas de Nova York, fica aterrado: aquella agitação, estrondo, ruido, febre, rostos consumidos e seccos, toilettes unicas, carruagens nos passeios, omnibus aos lados, caminhos de ferro por cavallo no centro da rua, caminhos de ferro à machina por cima das ruas, junto aos tectos das casas, o apparato immenso da policia, a excentricidade dos annuncios, o rumor apressado de todo o mundo... Comprehende logo que está entre um povo barbaro, que aprendeu a civilização de cór. Mas barbaro como é - que força, que originalidade inventiva, que perseverança, que firmeza! É estranho! E ao mesmo tempo que grosseria de maneiras: revolver, praga e empurrão, algumas palavras de inglez e muita saliva - eis o que é a lingua americana.
Como eu detesto esta canalha! Como a mais pequena aldeia de França é superior, immensamente superior pela sua civilização a esta orgulhosa Nova York, que se chama a si mesma, como Roma - "A Cidade". Estupida Nova York - que fez ella jámais para se chamar "A Cidade"? Paris fez a Revolução, Londres deu Shakspeare, Vienna deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa... deu-nos a nós - que diabo! Mas esta estupida Nova York o que tem dado? Nem mesmo as grandes invenções da America são della. Aqui, quem inventa, quem inventa por todos, quem inventa sempre, é Chicago.
Chicago, sim tem dotado o mundo com as três quartas partes das machinas que elle possue. Mas Nova York? Nunca sahiu nada de Nova York, - nem um homem, nem uma idéa, nem um livro, nem uma machina, nem uma victoria, nem um quadro, nem um dito. Nova York é um "tour-de-force" da brutalidade - nada mais. E no entanto, meu amigo, que diabo! - é necessario amal-a. Com as suas grandes avenidas, tão cobertas de arvores e de sombras como um bosque, com a belleza extrema das suas mulheres, com as grandes praças onde a relva é por si só um espectaculo, com as suas egrejas gothicas, todas cobertas de trepadeiras e mal apparecendo por traz da folhagem das arvores (joias de architecturra contemporanea). Nova York, com o seu sumptuoso ruido, com o romantismo dos seus crimes por amor, com os seus parques extraordinarios que encerram florestas e lagos - como outros encerram arbustos e tanques - com a sua orginalidade, com a sua caridade apparatosa, com as suas escolas simplesmente inimitaveis, os seus costumes, os seus theatros (aos quatro em cada rua), é uma tão vasta nota no ruido que a humanidade faz sobre o globo - que fica para sempre no ouvido! Eu estou aqui a escrever-lhe - e está-me a lembrar com saudade o rolar dos tramways nas ruas. - Querida Nova York! - Não odiada Nova York!"


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